quarta-feira, 9 de novembro de 2011

MEMÓRIAS DE UM ESTUDANTE DE MENTIRA (8)

O quarto do quarto

Durante a minha longa jornada na CEU (Casa do Estudante Universitário) a maioria do tempo residi em quartos localizados no 7º andar, porém devido a uma desinteligência familiar (adoro esse termo) tive que passar uns meses morando no 4º andar, e foram meses profícuos em matéria de histórias.
Foi no 413 e arredores onde tudo aconteceu, se tudo fosse só isso é claro. Para começar nada melhor do que falar sobre meus companheiros de quarto, pois é, ao invés de dois, nós morávamos em três. Esse fato era inédito na CEU, nunca antes na história daquele local três moradores oficiais dividiram o mesmo alojamento. Cá entre nós, isso era uma completa idiotice, dividir 6m/2 ao meio já era um absurdo, em três era insanidade. No 413 nós tínhamos a mesma densidade demográfica do Bangu I no Rio.
Nesse cubículo moravam o Black Man, o MAN e eu (Pac-Man prós íntimos). É isso ai mesmo, eu morei com a lenda, o mito, o indecifrável, o inelegível, o MAN (figurinha carimbada dessas memórias). Às vezes me pergunto se eu tive muito azar ou muita sorte de ter conhecido certos seres humanos, não encontro resposta. Enfim, o Black Man era, aparentemente, um cara tranquilo, sua vida sofreu drásticas transformações quando o MAN foi morar com ele, o MAN tem o poder de transformar a vida das pessoas, nem sempre pra melhor.
Para entender melhor como as coisas funcionavam no 413 é necessário descrever as coisas que co-habitavam esta “cela” conosco: tinha um triliche e uma cama (se contar bem perceberá que estávamos prontos até para receber hóspede, e recebíamos), um frigobar (produto de escambo do MAN), uma cena do crime (a figura de um corpo demarcada no chão), uma TV (supõe-se que tenha sido trazida por Cabral nas Caravelas), um Nintendo 64 (pertencente ao Mr. Miner [o quarto elemento do 413]), um rádio relógio (cuja sintonia estava estacionada na freqüência 910 AM da rádio Caiçara, onde dizem, que a música não para) e inúmeras camisinhas disponibilizadas pelo sistema único de saúde brasileiro (sua comercialização servia de complemento salarial para o MAN).
São inúmeras as memórias que tenho da época no 413, poucas ficariam imunes a processos judiciais se publicadas, sendo assim selecionei as mais leves para contar.
Existiam algumas tradições no 413, sempre quando alguém ia nos visitar era recebido com uma salva de palmas. Qualquer tipo de intervenção artística poderia e deveria ser afixada na porta, chegou a ponto de todos os moradores do andar colocarem suas “artes” em nossa porta, tínhamos desde fotos 3x4 até calcinhas beges (dentre outras coisas broxantes). A nossa porta tinha uma outra particularidade, não era possível trancá-la, isso acontecia porque depois que precisei arrombá-la (com ajuda do Miner) ela nunca mais foi a mesma.
Constantemente fazíamos festas apoteóticas que começavam no terraço e terminavam no 413. A bebida servida geralmente era vinho de garrafão, geralmente escolhíamos um tinto varietal de colheita tardia, ou seja, roxo de variedade ruim colhido tarde da noite. Tínhamos convidados rotativos, chegavam, olhavam e iam embora. Os poucos que ficavam tinham garantia de divertimento.
Após a ingestão de quantidades quase letais de álcool as coisas começavam a acontecer nas festas, o MAN tinha clara tendência naturista, arriava as calças e sai correndo (saltitando) pelo corredor do andar. O Black tinha tendência esbanjacionista, começava a atirar vinho no chão do quarto (o quarto sempre estava com perfume de uva). Eu era tomado da síndrome do Zé Graça, achava que era comediante Stand up.
A situação mais engraçada que lembro é de estar ouvindo Cúmbia (ritmo latino) no rádio, duas colombianas dançando a vera, o Black Man atirado no chão balançando a cabeça com a língua de fora e o MAN passando “embaixo da cordinha” (representada por um cabo de vassoura). Toda festa acabava bem, diferente do dia seguinte que quase sempre começava mal.
A fase mais conturbada da minha estadia no 413 foi quando o Man começou a trabalhar no Habib’s, sobre esta época é impossível não lembrar que foi quando tivemos a primeira reprovação em um teste de fezes na história do planeta, um protozoário minúsculo chamado Giárdia Lamblia fazia sua morada no intestino do MAN. Após eliminar o hospedeiro maldito e indesejado, o MAN enfim pode começar a trabalhar e foi aí que começou o meu martírio. O homem se transformou, passou a só ouvir Racionais, chegava todo dia bêbado em casa às 7h da manhã trazendo mais chopp em garrafas pet e dois colegas de trabalho para pouso (cinco pessoas dentro do quarto já era demais pra mim), além de ter adquirido um novo e incompreensível dialeto, enfim, a convivência se tornou insuportável e tive que voltar para o sétimo andar e ir morar com o Fat Man.
Os tempos de 413 foram inesquecíveis, afinal de contas ali estavam os seres com menor nível de iluminância que tive contato na vida. Ou será que a luz que irradiavam era tão forte que acabei cego para a importância daquele momento. Sinceramente eu não sei, o que eu posso afirmar é que a Caiçara têm em sua programação uma quantidade assassina de músicas do Rei Roberto Carlos.

“Você é mesmo essa mecha; De branco nos meus cabelos; Você pra mim é uma ponta; A mais dos meus pesadelos.” (Desabafo, Roberto Carlos)

5 comentários:

  1. Quanto toca Racionais no meu carro eu escuto e não falo...

    Minha fase de Racionais era aos 14 anos.

    Abração Poeta,

    Alex

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  2. Oh man... esse ta especial, muito engraçado e na minha humilde opinião bem escrito. Em vista disso tenho duas palavras para dizer: para béns!

    Abraço,

    Paulo

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  3. O Alex tem um carro, quanta decepção!!!
    sei lá por que

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  4. Bons tempos esses, em que a casa tinha uma rádio pirata, logo do outro lado da rua havia a famosa CATACUMBAS, e abaixo o salvador R.U.Sem falar que os estágios eram todos próximos. Lembro que na formaturas de todos, poucos agradeceram ao senhor ARI e ao porteiro Ulisses, mas até mesmo o R.U. era esquecido, em momentos tão sublime, como uma formatura, até eu me formei, mas apenas assisti a minha formatura, achando que não havia me formado. Isso para ser ter uma idéia de quão a vida era para mim, imprevisível e ainda o é.

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